Difícil passar por algum lugar que eu desenhei em alguma das minhas histórias e não ser mentalmente transportado no tempo de volta ao momento em que eu estava desenhando aquela página. Acontece quando a gente vê um filme, uma série ou quando lê um livro ou um Quadrinho, e acontece também com o autor da obra que retrata o lugar.
Visitei o topo do edifício Martinelli em Junho pela primeira vez na vida, mas retratei a cobertura no início do capítulo 6 do Daytripper. Na época, o jeito era procurar referências na internet pra entender os detalhes da varanda na cobertura e, o mais importante para a história, a vista para o horizonte dos arranha-céus da avenida Paulista ao fundo (e, para além deles, a fumaça vindo de um desastre aéreo no aeroporto de Congonhas). Tomei algumas liberdades poéticas na hora de desenhar a cena (mudei alguns prédios de lugar, coloquei o topo da Catedral da Sé mais em destaque), mas fiquei surpreso com o quão parecida é a sensação da vista lá de cima com a vista que eu coloquei no livro.
O quadrinho seguinte, que mostra em close a reação de Ana à coluna de fumaça que prenuncia uma tragédia, também me transporta ao passado e eu volto a sensação da leitura de um quadrinho do Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, onde os olhos da jovem Robin se enchem de lágrimas em meio ao caos do ataque do Coringa ao parque de diversões (e onde ela acaba de sobreviver ao ataque do artesão dos bonecos assassinos, que morre na montanha-russa).
A festa de Soul music e Groove que me levou ao topo do Martinelli se chama Talco Bells e, durante os quase quinze anos que tenho frequentado a festa, fui acumulando histórias em diferentes espaços da cidade, desde o Hotel Cambridge, no centro, passando pelo Estúdio M (antigo clube Avenidas), em Pinheiros, pelo Cine Jóia, na Liberdade, e pelo Fabrique, na Barra Funda. Durante a pandemia, fui à primeira experiência da Talco Bells ao ar livre, na Casa das Caldeiras. Nas edições que aconteceram em 2023 e 2024 no City Lights, em Pinheiros, eu não fui.
O Martinelli está prestes a começar uma reforma maciça como parte de um plano de revitalização em comemoração aos 100 anos do edifício. A agenda cultural da cobertura faz parte dessas plano e precede o começo das obras. Nesta sexta, vou mais uma vez ouvir boa música no topo do edifício que foi, na época da sua construção e durante muitos anos, o mais alto de São Paulo,
Sonhando com futuros Quadrinistas
O curso que eu organizei na biblioteca do Parque Villa-Lobos continua, entrando agora no módulo que foca na escrita (ministrado pelo Joca Terron). Ao mesmo tempo, os alunos tem uma lição de casa que eu passei para fazer uma história de uma página com um tema comum, escolhido durante minha última aula, na semana passada. Depois de alguma discussão sobre diversos temas sugeridos, buscando um assunto que todo mundo tivesse vontade e curiosidade de explorar, o tema foi SONHO.
Depois da aula, enviei para os alunos uma das tiras da série Quase Nada, que eu e o Bá publicamos semanalmente na Folha de São Paulo de 2008 a 2016, onde o tema dos sonhos aparecia.
Mais algumas tiras que fizemos tinham relação com sonhos. O aspecto simbólico dos sonhos combinava com as nossas tiras. Da mesma maneira, já tive diversos sonhos onde o universo dos Quadrinhos aparecia. Passo muito tempo pensando em Quadrinhos, então é natural que minhas experiências com o trabalho reapareçam em sonhos. O último foi na semana passada, quando fiquei sabendo que meu amigo John Cassaday havia morrido. Sonhei com isso na noite seguinte, onde eu estava dando uma aula sobre Quadrinhos e conversando com um Quadrinista brasileiro sobre cuidar da saúde, pra não acontecer o que aconteceu com o John. Na sala ao lado, conversei com outro Quadrinista amigo meu (que no sonho era um misto de Paul Pope, Grampá e Cassaday) sobre cuidar da saúde na nossa profissão.
Fazer Quadrinhos é o sonho de muita gente. Fazer arte, então, nem se fala. E esse sonho, como vários sonhos que temos quando estamos dormindo, não apresenta um caminho linear, não é fácil de decifrar, não apresenta respostas fáceis. O sonho da arte conta muito com nossa relação pessoal com nosso instinto, com nossa capacidade de acessar nossos sentimentos mais abstratos e canalizá-los para a produção. Tão importante como estar em sintonia com o mundo ao redor, o artista precisa estar em sintonia com seu próprio mundo interior. Precisamos correr atrás dos sonhos. Precisamos crescer.
“Every Second Counts”, diz a placa nas cozinhas da alta culinária do The Bear.
O que você está esperando?
Disco riscado
Comprei um disco de vinil na minha última viagem (a gravação de um show do David Bowie de 1972). Lembrei disso quando fiquei pensando sobre os assuntos que reflito nas minhas cartinhas, e se por acaso me repito (principalmente nesse movimento de escrever cartas em inglês e português) e acabo soando como um “disco riscado”. Será que essa expressão um dia vai deixar de existir se ninguém mais souber o que acontece quando um vinil está riscado e a agulha da vitrola pula e volta na música, repetindo (pra sempre) a parte danificada? Será que a impressão de repetição que eu tenho quando volto constantemente aos desafios e dificuldades da vida de Quadrinista existe só na minha cabeça, ou também o leitor se cansa da insistência nesses assuntos (um reflexo do aspecto repetitivo do cotidiano da nossa profissão)?
Minha última cartinha em português foi enviada em 20 de Julho, dois meses atrás. Vou tentar não demorar mais dois meses pra escrever a próxima (já pensei até no tema).
Cuidem uns dos outros, com gentileza e curiosidade.
Pa-ZOW!
Fábio Moon
Base Lunar, São Paulo
20 de Setembro de 2024