O telefone tocou novamente
Nas duas últimas cartinhas em português, postei exemplos que eu coloquei no nosso finado blog, em 2005, que eram reflexos do que estávamos pensando, provavelmente motivados pelas aulas que demos para alunos dos CEUs aqui de São Paulo, sobre a arte de fazer Quadrinhos. Essa base, onde o desenho pode ser simples como homens de palitinho, onde é mais importante saber compor imagens com palavras do que saber desenhar bem (e desenhar bem já é, em si só, um critério muito subjetivo pra discutir numa cartinha como essa), ainda faz parte de todos os cursos de Quadrinhos que nós damos.
Quem já fez algum dos nossos workshops sobre o básico dos Quadrinhos (de um dia, no máximo dois) vai reconhecer o tema da historinha que o Bá desenhou em 2006 para ilustrar algum ponto de uma aula que ele estava dando na época (sobre composição e equilíbrio de preto e branco).
Nosso exercício mais frequente era propor que os alunos fizessem uma história de uma página a partir de um tema comum, e normalmente nós usávamos uma parte de uma letra de música como tema, e na maioria das vezes era esse pedaço da música do Jorge Ben:
“o telefone tocou novamente, fui atender e não era o meu amor.”
Somos fãs de Jorge Ben, mas usávamos essa frase pelas possibilidades narrativas e estéticas que ela proporcionava ao exercício. Na frase, tem mais de uma ação (o telefone tocar e alguém atender), sendo que uma delas estimula o uso de efeitos sonoros e onomatopeias (a dificuldade dos alunos de hoje, que não cresceram com telefones fixos em casa, é substituir o “TRIM” por um barulho que reflita os toques personalizados dos celulares de hoje). Existem detalhes subentendidos que exigem que o aluno preste atenção na frase e busque soluções gráficas que passem essas nuances. Como mostrar que o telefone tocou “novamente”? Como deixar claro que, ao atender, descobre-se que “não era o meu amor”?
Atualmente, quase não atendo mais o telefone. 90% das ligações são telemarketing, gravações, ou número errado.
Preciso escolher outra música para os exercícios dos próximos cursos.
Experimentando outras pontas
Talvez seja o fim do inferno astral despertando em mim essa veia consumista. Talvez seja a curiosidade latejante sempre que eu vejo desenhos originais de outros artistas e percebo que eles usam materiais diferentes do que os meus. Pode bem ser a frustração de saber que a qualidade dos materiais vem mudando nos últimos anos, e nem o papel que você e gosta nem o pincel que você idolatra entregam o mesmo resultado que você espera. Só sei que, num momento de passeio pela internet, resolvi pesquisar algumas ferramentas de desenho diferente e agora é hora de fazer alguns testes.
Eu faço as páginas de Quadrinhos com pincel, mas faz tempo que comecei a usar canetas-pincel em desenhos de caderno e rascunhos de convenção, só que eu basicamente uso canetas que replicam o efeito do pincel. Comprei um conjunto de canetas com pontas diferentes pra tentar ampliar os tipos de linha que eu uso. Seguindo a mesma mentalidade, comprei um conjunto de pontas de bico de pena.
Atualmente, eu só uso bico de pena quando faço as letras dos balões à mão, mas sei que, como as canetas, o bico de pena está só me esperando para transformar meu desenho. Traço finos, desenhos soltos, hachuras e rabiscos tortos me esperam. Quem sabe eventualmente eu encontre uma caneta com ponta de bico de pena que junte todas essas minhas vontades em relação ao traço numa ferramenta só. Enquanto isso, continuo usando as penas mais tradicionais que você encaixa numa base (de madeira ou plástico) e mergulha no pote de nanquim.
Olhando pra foto, esse kit que eu comprei parece um kit de maquiagem.
Minha vontade de variar os tipos de pincel que eu uso tem menos a ver com desenho, e mais com pintura, então minha experimentação nesse sentido tem mais a ver com formas do que linhas, e busca mais expressividade na pincelada, na textura, num caminho mais abstrato do que figurativo.
Para os testes com os pinceis, preciso de bons papéis (bicos de pena também exigem uma gramatura que aguente um volume maior de tinta). Essa busca e experimentação não acaba nunca. Será que é por isso que tanta gente tem migrado para o desenho digital? Talvez seja, mas o desenho digital também requere buscar as ferramentas certas, testar aplicativos, investir em computadores, mesas digitalizadoras, programas profissionais de desenho.
Cuidem uns dos outros, com gentileza e curiosidade.
Pa-ZOW!
Fábio Moon
Base Lunar, São Paulo
30 de Maio de 2025
moon, tem um livro que eu adoro, o Manual da demissão, cuja primeira frase é exatamente "O telefone tocou novamente, fui atender etc". acho que você vai gostar